Paulo César Silva
O presente artigo procura analisar uma arte sacra produzida a partir de cerâmica faiança e instalada numa residência
edificada entre o final do século XIX e o inicio do século XX em Tauá no sertão
dos Inhamuns.
A referida abordagem pretende trazer a
lume hipóteses sobre o processo de produção, logística e aquisição desse
artefato, e a importância de se preservar esse importante exemplar que remonta,
provavelmente há um século.
Para tanto, investigo a origem da
referida obra sacra, partindo da análise empírica de um dos únicos exemplares
que ainda resiste ao tempo e que se encontra fixado na antiga casa do Cel.
Lourenço Alves Feitosa e Castro (1844-1915), em Tauá, Ceará, ao lado da Igreja Matriz de
Nossa Senhora do Rosário, na Av. Cel. Lourenço Feitosa, bem como, em pesquisas
que corroborem com a abordagem proposta.
A arte sacra em faiança refere-se à
criação de peças artísticas religiosas feitas de faiança, um tipo de cerâmica de
barro branco e vítreo que é geralmente esmaltado e decorado. Essa forma de
expressão artística tem sido amplamente utilizada em contextos religiosos ao
longo da história, incluindo no Brasil.
No Brasil, as faianças sacras ganharam
destaque especialmente durante o período colonial e o período do Barroco. As
peças de faiança eram utilizadas para adornar igrejas, capelas e oratórios,
contribuindo para a rica decoração dos espaços religiosos.
De acordo com SILVA (2023): “a antiga
casa do cel. Lourenço Alves Feitosa e Castro, situada ao lado da Igreja Nossa
Senhora do Rosário, abrigou a primeira Câmara de Vereadores de Tauá.”
Esta casa, edificada entre o final do século XIX e inicio do século XX,
comporta uma arquitetura neoclássica
adaptada às peculiaridades do sertão nordestino com cômodos, porão, fonte,
varanda e terreno relativamente amplo.
Sua
fachada foi modificada provavelmente, após a terceira década do século XX, uma
rara fotografia, com data estimada em 1930 publicada no Blog da profa. Anamélia
Mota apresenta a mesma com um conjunto de adereços bem diferente da atual tendo
um acabamento superior afunilado, com um cume parecido ao de templo religioso,
uns florões sobre a fachada e ornamentos em volta das janelas, típico neoclássico
nordestino
.
Na área externa, fixado na parede,
encontra-se um conjunto de 10 peças de pisos cerâmicos em faianças instalados
na parede, compostos numa dimensão de 30 cm de largura por 45 cm de altura. Este
conjunto forma um mosaico de arte sacra, em suas extremidades formam um quadrante
com florais pintados em azul
del-rey, com um fundo amarelo ouro, em cada canto,
há pequenos florões pintados, ao centro há a representação de São José e o menino
Jesus em seu colo pintado em azul
del-rey. Assina a obra a Cª Brasª Pró Arte
Bordalo Pinheiro. Abaixo, encontra-se peça única de 15 cm x 15 cm com a descrição
“Deus abençoe esta casa” em tipografia gótica.
Em vista disso, propus investigar a
origem do referido mosaico cerâmico que formata esse importante adereço
artístico que, certamente, remete um valor histórico inestimável para a
história e a memória de Tauá.
Todavia, para uma clareza quanto ao
objeto analisado, faz-se pertinente compreendermos sua origem. Analisando
cuidadosamente esse mosaico, algo fundamental nos aproxima de sua procedência,
na parte inferior há a seguinte assinatura: “Cª Brasª Pró Arte Bordalo Pinheiro” ou Cerâmica Brasileira Pró-Arte
Bordallo Pinheiro
.
A Cerâmica Brasileira Pró-Artística Bordallo
Pinheiro, tem origem em Rafael Bordallo Pinheiro (1846-1905). De acordo com ALEGRIA (2023):
“foi um caricaturista magnífico e um ceramista excecional [...]”.Rafael
Bordalo Pinheiro destacou-se ainda como ilustrador de capas de livros e de
cabeçalhos de revistas ou jornais, alguns dos quais fundados ou dirigidos por
ele, como “A Lanterna Mágica” (1875), “O António Maria” (1879) ou “A Paródia”
(1900). Proveniente de uma família de artistas – o pai era o pintor e escultor
Manuel Maria Bordalo Pinheiro (1815-1880) e um dos seus onze irmãos era o
brilhante retratista Columbano Bordalo Pinheiro (1856-1929) – Rafael frequentou
o curso de Desenho na Academia de Belas Artes de Lisboa. Viveu durante quatro
anos no Brasil e quando regressou a Portugal, em 1879, dividiu a sua vida entre
as Caldas da Rainha e Lisboa, onde faleceu aos 59 anos, em 1905.
A Fábrica de Faianças das Caldas foi
fundada a 30 de Junho de 1884, sendo Raphael Bordallo Pinheiro responsável
pelos aspetos técnico-artísticos e seu irmão Feliciano Bordallo Pinheiro pelos
aspetos organizativos. Neste mesmo ano começa a produção cerâmica na Fábrica de
Faianças nas Caldas, revelando peças de enorme labor técnico, qualidade
artística e criativa, desenvolvendo: azulejos, painéis, potes, centros de mesa,
jarros bustos, fontes lavatórios, bilhas, pratos, perfumadores, jarrões e
animais agigantados, etc .
Todavia, com o falecimento de Rafael
Bordalo Pinheiro, em 1905, a fábrica é vendida em hasta pública e desfeita. É
nesse contexto que Manuel Gustavo decide fundar a Fábrica de Faianças Bordallo
Pinheiro e continuar o trabalho do seu pai . Após
a morte de Manuel Gustavo, em 1920, uns grupos de ilustres caldenses juntamente
com os operários deram continuidade à empresa e, após a grave crise de 2008, é
adquirida pelo Grupo Visabeira que lhe assegura a continuidade produtiva e
histórica .
É plausível o entendimento que a “Cerâmica
Brasileira Pró-Artística Bordallo Pinheiro” tenha relação direta com a Fábrica
de Faianças Bordallo Pinheiro situada em Caldas da Rainha, província de
Estremadura, Portugal. Embora faltem dados mais concretos que evidencie se a
fabricação do mosaico cerâmico foi realizada no Brasil ou foi importado da Fábrica
de Faianças Bordallo Pinheiro.
Porém,
vale ressaltar que no Alto da Boa Vista (Rio de Janeiro-RJ) há um enorme
conjunto de azulejos com o mapa da
Floresta da Tijuca orientando os visitantes desde 1946. Segundo Carvalho
(2023), foi confeccionado por uma empresa especializada em cerâmica artística
(Cerâmica Brasileira Pró-Artística Bordalo Pinheiro), sob encomenda de Raymundo
Ottoni de Castro Maya quando este foi administrador do parque entre os anos de
1943 e 1946. No canto inferior direito do Painel, na moldura, há a autoria do
trabalho, onde consta a empresa que produziu sob o nome de "Cerâmica
Brasileira Pró Arte Bordalo Pinheiro", do Rio de Janeiro. Contém também a
assinatura do provável artista responsável pelas ilustrações, assinado com a
letra "R" e sobrenome "Silva"
.
Sobre
a cerâmica Faiança,
ASSIS (2016) explica que:
É
o termo que se dá ao conjunto de argila e esmaltes cerâmicos queimados à
relativamente baixas temperaturas (menos de 1250 °C). Quanto à
argila, caracteriza-se pela cor branca ou marfim. Muitas vezes, eram cerâmicas
mais acessíveis ao consumidor que as porcelanas chinesas e durante muito
tempo desfrutaram de grande popularidade .
Segundo o site, Restauração Prates
(2012) “No Brasil, a indústria de louça de faiança fina teve seu maior
desenvolvimento no início do século XX, sendo que seu declínio se inicia na
década de 1940, quando a produção de porcelana se acelera e dissemina pelo
País. Com a maior oferta de louça de porcelana, mais resistente e durável, e de
acabamento mais fino e mais branco, a louça de faiança foi gradualmente sendo
preterido, o que levou ao fim de várias das fábricas pioneiras de louça no
Brasil .”
Sobre algumas respostas, ainda pairam
dúvidas, por exemplo: em que ano as cerâmicas foram encomendadas a Cerâmica
Brasileira Pró-Artística Bordallo Pinheiro? Quem as encomendou? Em que data foi
instalada essas cerâmicas na parede, formando o aludido mosaico?
Joaquim
Pimenta, em seu livro Retalhos do Passado, traz as seguintes descrições do Cel.
Lourenço Alves Feitosa e Castro:
Era
chefe político dos Inhamuns Lourenço Alves Feitosa, coronel da Guarda Nacional
e antigo tenente na Guerra do Paraguai. Nada tinha de mavórtico, nada de chefe
local do interior do Brasil, a maioria deles, iletrados, brocos e autoritários.
[...] deputado à Assembleia Legislativa do Estado, entendendo de leis e capaz
de escrever um discurso em bom vernáculo .
Tendo em vista esse perfil descrito por
PIMENTA (1945) em sua autobiografia que discorre em Tauá entre 1900 e 1909,
percebe-se como o Cel. Lourenço foi uma pessoa de muita influência, sendo uma
forte liderança política nos Inhamuns, muito respeitado no seio de sua família,
seus serviços prestados na Guerra do Paraguai bem como seu posicionamento como
deputado na ALECE trazem prerrogativas onde se (embora o isolamento
do interior e a morosidade em que se realizavam os contatos com outras partes
do Brasil e até do exterior tornasse o processo lento) permita a hipótese que o conjunto de cerâmicas
pode ter chegado a Tauá entre o final do século XIX ou nas primeiras décadas
do século XX, por encomenda do Cel.
Lourenço Feitosa (1844-1915), considerando que este foi o período de maior desenvolvimento
de peças cerâmicas de Faianças.
Em que se pese também o fato de o conjunto
de azulejos com o mapa da Floresta da
Tijuca foi encomendado logo após esse período, sendo um dos poucos exemplares que se
tem notícia no Brasil, assinado pela mesma casa artística, a Cerâmica
Brasileira Pró-Artística Bordallo Pinheiro.
Em virtude do
que foi discutido, conclui-se que o conjunto mosaico instalado na varanda da
casa do então Cel. Lourenço Alves Feitosa e Castro (1844-1915), se trata de uma obra de arte
sacra, pintada a mão sobre pisos cerâmicos de Faianças. E que o mesmo pode ser
oriundo, ou da Fábrica de Faianças Bordallo Pinheiro
situada em Caldas da Rainha, província de Estremadura, Portugal, ou da "Cerâmica
Brasileira Pró Arte Bordalo Pinheiro", no Rio de Janeiro.
Provavelmente encomendado entre o final do século XIX ou nas primeiras décadas
do século XX, todavia, não se pode chegar a uma data mais precisa por
falta de fontes documentais que favoreçam tal datação.
Por fim, ressalta-se a importância de se
preservar tal conjunto mosaico, tendo em vista seu inestimável valor histórico
na cultura sertaneja e no modo como se se expressava sua religiosidade, tendo,
os órgãos competentes, a missão de salvaguardar tão relevante artefato.
REFERENCIAS:
ALEGRIA, Nuno. Rafael
Bordalo Pinheiro – um artista genial que marcou a arte portuguesa no final do
século XIX!. [S. l.]: CITALIARESTAURO.COM, [20--]. Disponível em:
https://citaliarestauro.com/rafael-bordalo-pinheiro-um-artista-genial/. Acesso
em: 18 maio 2023.
ASSIS, Gustavo. A Faiança
Portuguesa. [S. l.]: Gustavo Assis Cerâmicas Artesanais, 30 ago.
2016. Disponível em:
https://gustavoassisceramicas.com.br/pt/tipos-de-esmaltes-de-baixa-queima/.
Acesso em: 18 maio 2023.
CALDAS
da Rainha. [S.
l.], 18 maio 2023. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Caldas_da_Rainha. Acesso em: 18 maio 2023.
CALDAS, Go. Fábrica
Bordallo Pinheiro: Tradicional e Contemporâneo num só espaço…. [S. l.],
31 dez. 2014. Disponível em: https://gocaldas.com/fabrica-bordallo-pinheiro/.
Acesso em: 18 maio 2023.
CARVALHO, Fábio. Azulejos
Antigos no Rio de Janeiro: Alto da Boa Vista I - Painel de Azulejos com mapa
da Floresta da Tijuca. [S. l.], 8 jul. 2021. Disponível em:
https://azulejosantigosrj.blogspot.com/2012/06/tijuca-i-painel-de-azulejos-com-mapa-da.html.
Acesso em: 18 maio 2023.
DICIO, Dicionário Online de
Português. Faiança Significado de Faiança. [S. l.], 2023.
Disponível em: https://www.dicio.com.br/faianca-2/. Acesso em: 18 maio 2023.
MOTA, Anamélia Custódio. TAUÁ
ANTIGO EM FATOS E FOTOS. Tauá/CE: Blog, 5 mar. 2012. Disponível em:
http://anameliataua.blogspot.com/2012/03/taua-antigo-em-fatos-e-fotos.html.
Acesso em: 19 maio 2023.
PAULA, Martinho de. Arquitetura
Nordestina: Características, História e Curiosidades. [S. l.]:
SuaDecoracao.com, 6 jul. 2022. Disponível em:
https://suadecoracao.com/arquitetura-nordestina/. Acesso em: 18 maio 2023.
PIMENTA, Joaquim, Retalhos do passado: (Tauá-Fortaleza) /
Joaquim Pimenta. – Ed. Fac-sim. – Fortaleza: FWA, 2009, 250p. – (Coleção
Biblioteca Básica Cearense). Fac-símile da edição de 1945.
PINHEIRO, Bordallo. A
BORDALLO PINHEIRO. [S. l.], 2023. Disponível em:
https://www.bordallopinheiro.com/bordallo-pinheiro?fullview=true. Acesso em: 18
maio 2023.
PRATES, Restauração. RESTAURAÇÃO
DE PRATO MINIATURA EM FAIANÇA PINTADO À MÃO. [S. l.], 20 ago. 2012.
Disponível em: http://www.restauracaoprates.com.br/restauracao-de-uma-miniatura-em-porcelana-faianca/.
Acesso em: 18 maio 2023.
SILVA, Paulo César. Tauá uma breve história: do século
XVIII ao XXI, Tauá/CE, Ed. Do Autor. 2023. p. 128.